
“Isso é muito Black Mirror!” Essa definitivamente foi uma das frases mais repetidas no ano passado, até por aquelas pessoas que nunca sequer assistiram um episódio da série, isso se deve muito ao poder de alcance da Netflix que começou a produzir e exibir a série a partir da sua terceira temporada. Depois de um excelente terceiro ano, a segunda série mais comentada (a primeira sempre vai ser Game of Thrones) da internet está de volta para a sua quarta e ainda mais provocadora temporada.
Muitos afirmam que Black Mirror é uma série que apresenta uma versão pessimista sobre o futuro da humanidade, especialmente sobre a maneira que usamos ou ainda vamos usar as novas tecnologias, discordo totalmente, a verdade é que realidade atual é muito Black Mirror e isso na maioria dos casos é muito triste, temos muito mais histórias pesadas envolvendo a evolução tecnológica do que boas histórias, os episódios da série deveriam servir muito mais como um alerta para todos nos, para repensarmos sobre a maneira que usamos as novas tecnologias e não repetirmos os mesmos erros das histórias narradas, já que infelizmente muitas delas estão assustadoramente bem próximas de acontecer.
O quarto ano da série se destaca das demais temporadas por ter em todos os episódios protagonistas femininas e aproveita isso para falar sobre temas que abordam o universo feminino, seja nos relacionamentos, no trabalho, criação do filhos, mas é claro que a série não fica centrada neste universo e novamente debate os outros inúmeros problemas da nossa sociedade. Abaixo farei breves comentários e com alguns pequenos spoilers sobre os seis episódios da quarta temporada, dando ênfase aos temas e ao roteiro de cada um deles.
USS Callister:
A temporada começou com um dos melhores episódios da história da série, voltado ao tema do bullying, seja o físico, o psicológico ou o cyber, e as consequências dele. O criador da série Charlie Brooker e o roteirista William Bridges souberam dosar perfeitamente uma narrativa muito pesada com uma certa dose de humor, revelando um lado mais obscuro do mundo dos games e diria bem próximo de acontecer, além de ao mesmo tempo parodiar e homenagear Star Trek. U.S.S Callister com seus diálogos sarcásticos, debate temas como ser ignorado, o excesso do poder e até uma discussão interessante sobre a liberdade das inteligências artificiais e termina com uma forte mensagem sobre o controle da mulher sobre seu próprio corpo e destino.
Arkangel:
Extremamente atual e necessário Arkangel apresenta um forte debate sobre a maneira de educar seus filhos, a escolha entre protegê-los e esconder a verdade ou deixar que aprendam com seus próprios erros, uma lição de moral para uma geração de mães que criam seus filhos em redomas e não enxergam o perigo do excesso de proteção. A angústia de uma mãe para proteger sua filha a qualquer custo, é exatamente esse excesso de proteção no lugar de uni-las irá acaba criando uma distância entre elas, ao privar sua filha de ver o mundo como ele é de verdade, a mãe acaba criando uma pessoa com uma enorme vontade de viver todas as experiências possíveis, muitas vezes por causa dessa proteção excessiva a menina não enxerga limites e perigos. A direção e visão da atriz Jodie Foster foi essencial neste episódio, Foster conseguiu passar um olhar sensível sobre a relação entre mãe e filha, a delicadeza fica até evidente no simples e delicado efeito utilizado para mostrar o decorrer dos anos e o crescimento da filha, esse episódio não teria alcançado tão bem seu objetivo sem a interpretação de Rosemarie DeWitt como a mãe, um papel complexo e bem dominado pela atriz. Agrada a opção de mostrar que a tecnologia utilizada pela mãe para espionar sua filha no fim é proibida, um detalhe importante sobre como ainda muitas tecnologias vão ser inicialmente geniais e com o tempo podem ser consideradas perigosas.
Crocodile:
Crocodile apresenta, por diferentes razões, duas novas e atraentes tecnologias, o robô carro que entrega pizza já virou sonho de consumo de todos que assistiram esse episódio, já o aparelho capaz de mostrar as lembranças de uma pessoa é a o mesmo tempo instigador e assustador, especialmente pela maneira que é usado na história. Definitivamente o episódio mais pesado dessa temporada e a trama mais complexa, com uma esperta e inesperada interligação de duas histórias, a da arquiteta Mia (Andrea Risenborough) e da agente de seguro (Kiran Sonia Sawar). O público assiste as duas histórias e sente diferentes sentimentos com cada uma delas, com Mia fica perplexo com suas atitudes, o que também faz o público pensar sobre o que faria no lugar dela, ao mesmo tempo que torce pela agente de seguro e fica com medo ao vê-la se aproximando de Mia. A tecnologia neste episódio serve como um meio para mostrar o pior do ser humano, seja a auto proteção, o egoísmo (ambos com Mia) e a busca frenética por um objetivo (com a agente de seguro), no fim ambas pagam caro por seus desejos. O final do episódio é um dos mais pesados de Black Mirror e também um dos mais irônicos, com um assassinato inaceitável e uma testemunha inesperada.
Hang The DJ:
A comparação com San Jupier é inevitável, afinal Hang the DJ (melhor escolha de título da temporada) é o episódio romântico e o único otimista da temporada, nele temos um um pensamento sobre como chegamos ao ponto de usar a tecnologia em nossos relacionamentos amorosos, é ao mesmo tempo uma crítica e também uma visão otimista sobre aplicativos como Tinder. Uma história de amor onde logo na primeira cena já torcemos pelo casal principal (interpretados deliciosamente por Georgina Campbell e Joe Cole), por mais que tudo leve a crer que eles não vão ficar juntos, afinal estamos falando de Black Mirror que não é uma série de finais felizes, mas em uma grata surpresa a romântica reviravolta final deixa no público um sincero sorriso. O universo onde vivem esses dois personagens é uma lembrança de que o amor é muito mais do que um balançar de um dedo aprovando ou desaprovando uma pessoa, muito mais do que uma transa boa, é algo mais complexo e impossível de ser quantificado por um aplicativo, uma troca de olhar diz muito mais do que qualquer outro ato.
Metalhead:
A premissa de humanos sobrevivendo a um futuro apocalíptico e sendo caçados pelas máquinas já foi usada um milhão de vezes e de formas bem mais criativas, toda a ideia deste episódio está cheia de clichês que desonram o legado dessa histórica série. O robô cachorro assassino jamais parece ser uma real ameaça, é até estranhamente fofo, em alguns momentos chegar a ser cômico ver as pessoas tendo tanto trabalho para destruí-lo, o melhor dele é a a bomba que coloca um radar em uma pessoa, tornando-a um objeto de caça, Bella é a personagem mais fraca das protagonistas dessa temporada, a típica sobrevivente que luta pela sua vida, mas sem carisma algum. Decepcionante a preguiçosa direção de David Slade (30 Dias de Noite) que tem experiência no gênero terror, mas aqui não faz esforço algum, a escolha do preto e branco remete aos filmes de terror antigos e para dar um pouco mais de estilo apresenta um efeito de câmera lenta nas cenas de perseguição, mas a falta de emoção das mesmas diminui todo o impacto. Um episódio que termina de forma ainda mais decepcionante com seu final excessivamente baseado em Cidadão Kane.
Black Museum:
A temporada termina de forma esplêndida com Black Museum, um episódio que foge da fórmula padrão da série ao apresentar uma sequência de histórias curtas de terror que tem como temas de fundo o uso da tecnologia na medicina e um fortíssimo debate sobre os direitos dos pacientes que são objetos de experiências. É perturbador ver a história do médico que começa a ter prazer ao sentir as dores dos seus pacientes, tanto por quebrar a relação entre médico e paciente que estamos acostumados, como pelas fortes cenas. O segundo conto tem como tema a maneira como lidamos com a perda de pessoas queridas e o que faríamos para evitar isso, aqui com um tom mais leve por mostrar isso através de um casal. A ideia de colocar outra pessoa dentro de sua própria mente é muito contestadora e discutível o quanto isso poderia dar certo, o que fica evidente tanto com a história do casal como na revelação final. O terceiro traz de volta o assunto da inteligência artificial e qual é o seu limite, a história do prisioneiro transformado em um escravo virtual, sim ele tinha que ser negro para causar mais impacto, consegue causar mais tensão e dor no estômago do que a do médico. Para fechar com chave de ouro uma inesperada e realmente surpreendente reviravolta onde todas as histórias narradas se interligam e temos revelações daquele tipo de cair o queixo.